
Recomendo a leitura.
Biografia premiada tenta capturar essência do filósofo em vinte tentativas de resposta.
20 máximas polémicas
A inglesa Sarah Bakewell não tinha nada para ler em sua viagem de trem de Praga para Londres. Num sebo, só havia um exemplar em inglês: “Os ensaios”, de Michel de Montaigne (1533-1592), de quem ela, há cerca de 20 anos, nada sabia. O nome lhe remetia a algo entediante, mas Sarah comprou o livro, sentou-se com ele e ganhou um amigo francês que lhe contou sobre seu gato e seu cachorro, sobre sua vida sexual, seu gosto por rabanete e melão, suas crises renais e o medo da morte, num estilo de escrita que ela não esperava de um texto de mais de quatro séculos. “Os ensaios” permaneceram em sua mesa de cabeceira por anos antes que ela decidisse escrever sobre aquele homem. Afinal, como falar de alguém que já se revelara tanto, alguém que, ao iniciar sua obra, diz ao leitor: “sou eu mesmo a matéria do meu livro”?
A saída foi “Como viver — Ou uma biografia de Montaigne em uma pergunta e vinte tentativas de resposta”, publicada em 2010 na Inglaterra e recém-lançada pela Objetiva, com tradução de Clóvis Marques. “Tenha um compartimento privado nos fundos da loja”, “desperte do sono do hábito”, “filosofe só por acaso” e “abra mão do controle” são, segundo a biógrafa, algumas das respostas possíveis de Montaigne. Elas guiam cada um dos 20 capítulos da biografia, em que a autora mescla fatos da vida de Montaigne e da França no século XVI com a recepção de sua obra ao longo do tempo.
O formato do livro tenta seguir o espírito do biografado, já que a história do amigo no trem é mais do que o clichê sobre o livro como um bom companheiro. Montaigne originou uma tradição literária de pôr a si mesmo no papel. Mesmo que não estivesse diretamente falando de si, era por meio de sua experiência que as questões mais abstratas ganhavam forma. A esse gênero ele deu o nome de ensaio, no qual, como diz o próprio, o tema “vai em frente perplexo e cambaleante, com uma embriaguez natural”.
— Sabia que nunca seria uma biografia convencional, mas o formato surgiu quando comecei a pensar sobre a essência de Montaigne — diz Sarah, por telefone, de Londres. — São “Os ensaios” que o tornam interessante, por isso escrevi não só sobre sua vida, mas também sobre a vida do livro e o impacto da leitura de Montaigne nas gerações posteriores. Todo mundo se reconhece em Montaigne nos séculos XVII, XVIII, XIX, XX... São perspectivas muito diferentes sobre ele, mas em comum estão ideias sobre como se relacionar com os outros, como ser moderado e equilibrado. Montaigne detestava qualquer forma de fanatismo e intolerância.
Escrita de Montaigne na origem dos blogs
Como diz Sarah no início da biografia, ela está permeada por um Montaigne do século XXI. Ele chega a parecer um filósofo pós-moderno, em que o aspecto “cambaleante” das ideias, a noção de ensaio como tentativa, sem busca da grande verdade, ganha proeminência. Iniciados em 1572 e publicados pela primeira vez em 1580, “Os ensaios” foram sendo reescritos até 1592, com o acréscimo de novos pensamentos a cada revisão. “Se minha mente pudesse firmar-se com solidez, eu não escreveria ensaios, e sim tomaria decisões”, justificava. As mudanças de perspectiva do autor guiam o livro de Sarah, vencedor do National Book Critics Circle Award para biografia, nos EUA, e do Duff Cooper Prize de não ficção, na Grã-Bretanha. Logo no início, ela diz que a escrita de Montaigne é a origem dos blogs.
— Eu não fui a primeira a dizer que Montaigne foi o primeiro blogueiro, e pensei nisso mais pelo tipo de escrita sem um sentido de acabamento — diz ela, reconhecendo o perigo da comparação. — Escrever sobre si mesmo não é mais revolucionário, mas naquela época era um tabu. Hoje não conseguimos parar mais. Além disso, há uma grande diferença de qualidade entre o texto de Montaigne e o dos blogs.
Michel Eyquem, Senhor de Montaigne, foi um homem da Renascença. Educado em latim, no campo, seguiu para a escola urbana cujos métodos rejeitava, viveu as guerras entre católicos e protestantes na França, tornou-se magistrado e prefeito de Bordeaux e deixou a vida pública antes dos 40 anos para se dedicar ao pensamento, que cultivava na biblioteca, na torre do castelo da família de comerciantes que ascendera socialmente. Essa mudança de vida, conta Sarah, deveu-se a um acidente em 1569 ou 1570, ao ser derrubado do cavalo e ficar entre a vida e a morte que tanto temia desde que começara a ler os filósofos clássicos — temor reforçado pela perda do irmão, do pai e do grande amigo La Boétie.
Depois, a partir de 1970, só um de seus seis filhos sobreviveria à idade adulta. Ao descrever a experiência, Montaigne diria que a proximidade da morte em nada era dramática como fazia supor a filosofia clássica. A biógrafa credita ao acidente papel central na decisão de Montaigne escrever e no estilo de sua escrita, que passou a olhar para suas próprias sensações. Foi por essa procura da singularidade — e, por meio dela, uma busca de certos padrões humanos — que Montaigne ficou conhecido como “o primeiro moderno”, como diria, três séculos depois, o editor e escritor Leonard Woolf.
— Sua modernidade estava em pensar sobre a natureza humana. Ele se dá conta de fazer coisas completamente diferentes daquelas que queria, de que há uma espécie de sombra de nós, num momento em que não se tinha ideia do inconsciente — afirma Sarah. — Em muitos sentidos ele é o primeiro moderno, mas também pode nos parecer muito distante. Sua atitude em relação às mulheres, por exemplo, condiz com o mundo do século XVI, em que elas praticamente não recebiam educação e viviam separadas dos homens. Somos todos seres históricos, e Montaigne não poderia transcender totalmente a seu tempo.
“No mundo clássico, a filosofia era um modo de viver”
Autora de outras duas biografias, ambas sem edição no Brasil, sobre figuras menos conhecidas — “The smart”, sobre a irlandesa Margaret Caroline Rudd, uma prostituta de luxo na Londres do século XVIII, e “The English dane”, sobre o dinamarquês Jorgen Jorgenson, que fundou a primeira colônia na Tasmânia, no século XIX —, Sarah ouviu de muitos que seu livro era de auto-ajuda. Essa não foi sua intenção, como ela deixa claro ao afirmar na biografia que há uma grande diferença entre “como viver” e “como se deve viver”. E o resultado das “20 tentativas de resposta” é mais como uma brincadeira com Montaigne do que qualquer pretensão de listar formas de bem-viver. Sarah diz, no entanto, que nos tempos do francês não faria muito sentido separar filosofia de auto-ajuda.
— Hoje não podemos falar de filosofia sem credenciais acadêmicas, mas na Renascença, como no mundo clássico, a filosofia era um modo de viver. Quando criei 20 tentativas de resposta, estava pensando no sentido da palavra ensaio, de tentar algo — afirma ela, que trabalhou cinco anos na biografia. — A obra trata muito do ato de ler, de como as pessoas vivem experiências e aprendem com os livros.
Seria um grande elogio para o autor que disse: “nenhum prazer tem sabor para mim sem comunicação”. Entre os célebres leitores fascinados por Montaigne, como Rousseau e Voltaire, Sarah destaca Virginia Woolf, cujo fluxo de consciência nos romances se relaciona com o correr das ideias dos ensaios de Montaigne, e Nietzsche, que a surpreendeu.
— Tudo o que Nietzsche fazia era um tormento, enquanto Montaigne levava uma vida leve, com pessoas a sua volta, mas Nietzsche o admirava por seu ceticismo e interesse na natureza humana — diz Sarah, certa de que novas leituras fascinadas virão. — Daqui a cem anos as pessoas ainda vão pensar: “agora entendemos a essência de Montaigne”.
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